Tuesday, October 16, 2007

Frustração - a tragicidade das aparências

"Não tenho nada para fazer. Saio de casa com 10 euros no bolso das calças, uma tesoura de cortar as unhas e uma soqueira de plástico no bolso esquerdo do casaco Lonsdale, que comprei no Colombo há duas semanas. Apetece-me acção. Brigar, foder, fugir. Qualquer coisa que me acorde e me obrigue a dar valor ao aborrecimento do quotidiano. Reaprender a viver em sociedade. Procuro um qualquer bar cheio de gente e entro. Sento-me numa mesa perto do balcão. Peço uma Super Bock média. Sem nunca desviar o olhar primeiro, mantenho contacto visual com toda a gente, deixando sempre transparecer uma expressão neutra. Às mulheres que olham mais do que uma vez, sorrio. Existem muitos homens há minha volta. Muitas caras feias e bonitas, convencidos, limpos por fora e porcos por dentro – o tipo de gajos que as mulheres adoram mas que não aparecem em películas americanas. Sinto-me enganado por Hollywood. Sinto-me enganado pela puta da minha mãe que sempre me disse para ser simpático para as raparigas. De vez em quando, vou espreitando o grupo de quatro rapazes que estão na mesa ao fundo do bar, junto à mesa de bilhar. Todos na casa dos 25. Todos com aspecto de engatatões, mas não do tipo solitário ou original que românticos como eu têm tendência a admirar. Não, estes não têm uma réstea de carisma. São estandardizados, vestem roupa da Pull and Bear e têm cristas como a do Cristiano Ronaldo. Peço outra Super Bock média. Das colunas atrás de mim alguém nos ordena a ser a geração do amor. A geração do amor já passou. Talvez nunca tenha existido. Talvez seja tudo estético e nada seja realmente sentido. As mulheres na mesa ao lado olham para mim com desprezo. Têm corpos bons mas a maioria delas são feias. São pouco femininas. Aliás, as poucas mulheres desta cidade que sejam femininas, com cara bonita e um corpo bom vão-se embora mal tenham 18 ou 19 anos. Só ficam as adolescentes à espera de engravidar, ucranianas ou gajas de aldeia, ignorantes do caralho que nunca ouviram falar de Kid-A ou de Fausto. Eu também nunca ouvi nem nunca li nada disso, mas conheço o suficiente para manter uma conversa interessante. Sinto-me frustrado. Cresci a pensar que ia ser alguém na vida – sucesso na carreira, uma mulher bonita, casa branca nos subúrbios, um carro desportivo para mim e um utilitário familiar para ela, dois ou três filhos, televisão por cabo, piscina de plástico, essas merdas todas. Tenho 28 anos de idade e não tenho nada disso. Estou sozinho, o meu pai morreu há três anos, a minha mãe quero que se foda, a minha irmã não falo com ela desde a morte do meu pai, devido à cena que fiz no hospital. Tenho raiva de quem é feliz. Também eu fui feliz em tempos. Aprendi da forma mais difícil que quem é feliz mente e muitas das vezes ilude-se a si próprio. Estupidamente idealista, recusei-me a jogar o jogo, a entrar na farsa. Agora estou zangado comigo e com o mundo e pretendo demonstrá-lo. Levanto-me em direcção à casa de banho (detesto quem diz WC) e, sem querer, entorno um bocado da cerveja para o braço de um dos gajos na mesa do fundo. Ele reage violentamente com um “Olha aí, caralho!”, olho para ele e imploro-lhe “Dá-me um murro”. Tenho um sentido de justiça bastante acentuado, não sou capaz de bater em alguém sem ter a Razão do meu lado. Ele dá-me uma cabeçada no nariz. Fico a ver preto durante três ou quatro segundos. Cuspo-lhe na cara. Olho para ele uma segunda vez e noto que tem os braços desenvolvidos, provavelmente devido às infindáveis sessões de ginásio. Saio do bar e, graças a Deus, reparo que ele vem atrás de mim. “Queres mais, é?”. Estou agora no chão, a levar pontapés. Sem o induzir, vem-me à cabeça todos os animais que são torturados, todas as mulheres que são violadas, todos os manifestantes que são presos, todos os homossexuais que se suicidam. Tudo porque pessoas como esta simplesmente não querem saber. Tudo vem até mim. Não sou pessoa de brigar com murros. Levanto-me do chão de calçada, agarro-lhe no braço e mordo-lhe o dedo mindinho, arrancando-o e cuspindo-o no chão. Ele começa a chorar. Eu também. Meto-lhe as mãos dentro da boca e forço a abertura, rasgando-lhe os lábios. Agarro na tesoura que trouxe de casa e espeto-lha no olho direito, porque julgo que é esse o olho que ele usa para piscar às mulheres. Os amigos vêm agora em seu auxilio, para me dar a maior tareia que já levei na vida. Desmaio, completamente inconsciente, enquanto ouço alguém gritar "Chamem a polícia!". A dor que deveria sentir é sobreposta pelo rancor que sinto à crueza da humanidade e pela extrema felicidade que sinto na alma quando tenho aquele ultimo glimpse da cara completamente desfigurada do meu adversário."

7 comments:

Evoraforever? said...

Gosto da tua escrita forte e com personalidade.Parabéns.

Joana said...

Quantos desses sentimentos que descreves na pele de outro são teus?

Pedro De Mello said...

Além de ambos gostarmos de Super Bock, pouco ou nada temos em comum..
É isso que procuro na ficção, poder desmembrar-me em personagens exteriores a mim, apesar de serem resultado da minha própria imaginação.. logo, talvez tenha lógica pensares que recorro a uma outra personna para expelir sentimentos ou opiniões reprimidas/proibidas.. mas não é o caso, felizemente, if i may say so.. =)

Joana said...

Ah sim, felizmente. Andar por aí com vontade de bater em toda a gente não é muito simpático.

Desmembras-te noutros muito bem.

Pedro De Mello said...

É por essa razão que estudo teatro. eheh

cmombach said...

Lindo!!!
Entrei sem querer aqui e achei maravilhoso. Só uma coisa: como eu não sabia se o que tu escreverias era verdade ou ficção, comecei achando que era verdade. Só me dei conta que era ficção quando ocorreu a tal briga. Diria que haveria um pequeno problema de verossimilhança, hehehe. Soou muito irreal. Mas sem problemas, talvez era essa mesma a intenção. Parabéns e que tu continues a escrever!

APC said...

Muito bom!