"Chegado a casa, acendo um cigarro, abro uma cerveja e sento-me no parapeito da minha varanda. No céu, o reluzente mar de estrelas ilumina o infinito, relembrando-me da pequenez da condição humana. Dentro de casa, o Bebop do Miles Davis invade a minha sala de estar com tonalidades melancólicas e solitárias, provando ser o acompanhamento ideal para aquilo que eu espero que venha a ser uma noite de decadência, choro e introspecção. Apago o cigarro a meio e, à medida que o fumo se desvanece lentamente no ar, um derradeiro sentimento de culpa apodera-se de mim.
Eterna nostalgia.
As memórias arrependidas desfilam aleatoriamente na minha mente, causando-me uma embriaguez de vertigens, rancor e ressentimento. As más recordações sobrepõem-se às boas recordações e o medo, ou pior, a certeza de não poder voltar atrás asfixia-me a alma. Vou à cozinha buscar outra cerveja, onde fico cinco minutos a observar o meu cão a dormir. Subitamente, uma inesperada onda de tranquilidade cai sobre mim. Sinto que a mera presença do pequeno cão de pêlo amarelo me reconforta. Acendo outro cigarro e, enquanto fico a observar as bolas de fumo a irem de encontro à parede, desfazendo-se majestosamente em nada, apercebo-me friamente que estou, uma vez mais, sozinho. Porém, não me sinto só. Acredito que a solidão não existe apenas enquanto condição triste ou melancólica. Acredito mesmo que existe em cada um de nós uma necessidade vital de estar sozinho. É uma bênção podermos afastarmo-nos do mundo para reflectir. Poder parar para pensar. No entanto, a solidão ataca-nos quase sempre onde e quando menos esperamos. Quando perdemos o que de mais valioso temos, um vácuo espiritual preenche os complexos desígnios da vida, tornando o próprio acto de viver numa acção vazia, efémera e desnecessária.
Sinto-me velho, perseguido pelas saudades da vida que eu nunca tive, das mulheres que eu nunca amei e das viagens que eu nunca fiz - oportunidades para sempre perdidas, trocadas por infindos momentos de decepção e desespero cataléptico. O sonho de um passado tão distante e, ao mesmo tempo tão próximo, remete-me para uma outra reencarnação. “Diz-me com quem andas, dirarte-ei quem és” - alguém, cujo nome não me recordo agora, certo dia afirmou que as amizades de um individuo são a extensão da personalidade deste. Quem o disse decerto que não estava de todo errado. Porém, esqueceu-se de reflectir sobre um ponto importante: qual é a extensão da personalidade de uma pessoa que não tem amigos? Será válida a personalidade de todos os homens e mulheres que fazem da televisão um fiel amigo ou de uma garrafa de vinho um confidente?
Reflicto nisso. Suspiro." - David Silvéria